A megaoperação que visou alvos ligados direta e indiretamente ao Primeiro Comando da Capital (PCC) em dez estados na última semana mobilizou Polícia Federal (PF), Receita Federal e Ministério Público de São Paulo (MPSP). Apesar de combater o crime organizado, a ação vem sendo usada pelo governo federal para promover pautas políticas, em especial a Proposta de Emenda à Constituição (PEC) da Segurança Pública e a regulação das fintechs (bancos digitais).
Para analistas, o governo se calça, mais uma vez, em uma pauta de apelo popular – o necessário combate ao crime organizado – na tentativa de forçar a votação de uma proposta que centraliza poderes nas mãos da União e tira competência dos estados e municípios.
“Sempre há segundas intenções. Além de forçar o tema da regulação das fintechs, o governo usa a megaoperação para instrumentalizar a PF politicamente em defesa de sua PEC da Segurança”, alerta o doutor em Direito e comentarista político Luiz Augusto Módolo.
Para o sociólogo Marcelo Almeida, especialista em segurança pública e crime organizado, a operação, deflagrada em 28 de agosto, nem havia sido encerrada quando o ministro da Justiça e Segurança Pública, Ricardo Lewandowski, já defendia abertamente sua PEC da Segurança, que é alvo de inúmeras críticas no Congresso, entre prefeitos e governadores.
“Me parece que a PEC da Segurança é uma questão de honra para o ministro, que quer deixar um “legado”. Mas da forma como foi proposta – e mesmo com as reestruturações na Câmara dos Deputados -, é nociva a estados e municípios. Basta colocar em prática o que está previsto em leis que tudo o que consta na PEC será contemplado. Há um uso político demasiado”, destaca.
A aprovação da PEC da Segurança é vista como uma tentativa do governo Lula de ter alguma participação na segurança pública, e capitalizar politicamente uma redução da violência liderada por unidades da federação comandadas por governadores da direita ou do centro.
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Enquanto promotores também responsáveis pela ação mantiveram discrição, autoridades do Executivo assumiram o protagonismo e usaram o caso como plataforma política, avaliam especialistas. Eles destacam que a operação foi uma oportunidade para atacar adversários e agendas específicas.
Para Módolo, o governo federal segue usando a megaoperação como instrumento político em várias frentes. “Embora Receita Federal, Polícia Federal e Ministério Público tenham atuado de forma integrada, as autoridades do Executivo assumiram um protagonismo desproporcional, enquanto promotores responsáveis pela investigação [do MPSP] praticamente não apareceram”.
Segundo o advogado, o governo não tratou a operação como um resultado institucional, mas como plataforma de agendas próprias e apontou três exemplos. Entre elas, estaria a de associar, “de forma leviana”, o deputado Nikolas Ferreira (PL-MG) ao crime organizado, “demonizar” a Avenida Faria Lima para defender maior fiscalização de operações financeiras com o objetivo de aumentar a arrecadação de impostos e pressionar pelo avanço da PEC da Segurança Pública.
Para ele, a proposta da PEC, de caráter centralizador, nem sequer tem relação direta com o caso. “Ela não garantiria nem impediria a operação. A PEC serve para reorganizar órgãos e mudar competências, mas as normas que regem investigações e ações como essa sequer estão no texto”, explica.
Módolo alerta que, se o Executivo, que já demonstra dificuldades em enfrentar as facções, ampliar ainda mais seu controle sobre a segurança, a situação pode se agravar. Ele opina ainda que o governo tenta transformar a PF em uma polícia do governo. “[Flávio] Dino, ainda quando ministro da Justiça, já tinha feito um ato falho e dito que ela [a PF] era a Polícia do Lula”, reitera.
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Polícias sempre são de Estado, não de governos, alerta especialista
Para o presidente eleito e atual vice-presidente da Associação dos Oficiais da PM e dos Bombeiros Militares do Paraná (Assofepar), Alex Erno Breunig, que é advogado e especialista em segurança pública, operações como a deflagrada na semana passada são fundamentais. Elas deveriam ocorrer com frequência, estancando as veias financeiras do crime organizado, assim como serviços de inteligência aprimorados e a integração constante entre as forças de segurança.
Porém, segundo ele, isso sem interferências, sem tirar autonomias ou utilizar pautas para defesa de bandeiras políticas. “Todas as polícias têm que ser de Estado, nunca de governo. Fazer uso político das polícias representa sempre um risco à instituição e à sociedade”.
O advogado lembra que o método que vem sendo usado pelo governo federal é recorrente para tramitar matérias polêmicas sem a devida discussão com especialistas e a sociedade. “Aproveita-se de um momento de grande comoção ou de divulgação de ações de grande envergadura para passar matérias do interesse do governo. Sempre é assim”.
Breunig reitera que a PEC não traz nenhum avanço que possa auxiliar no combate à criminalidade em geral ou contra o crime organizado. “Ao contrário disso, tem o potencial de gerar sérios riscos à sociedade, especialmente se aprovada da forma como o governo quer”.
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Ricardo Lewandowski diz que a PEC é essencial para o combate ao crime organizado
Já o ministro da Justiça, Ricardo Lewandowski, diz que a PEC é essencial para o combate ao crime organizado no Brasil e citou como exemplos a institucionalização da cooperação entre as diferentes forças de segurança, e mencionou que, “embora já existam esforços de convencimento e colaboração entre as agências, a PEC quer tornar essa integração uma realidade cotidiana”.
As argumentações do ministro são rebatidas. “O que precisa de fato é vontade política para colocar em prática o que existe em leis e combater o crime organizado. O governo federal tem atribuições claras para monitoramento e controle de fronteiras, por exemplo. Há atribuições que já são específicas do governo federal no enfrentamento à criminalidade e não se faz. Por que tentar abraçar o que os estados estão fazendo e alguns muito bem feitos, por sinal?”, destaca o especialista em segurança pública Sérgio Gomes, que integrou as forças federais de investigação contra o crime organizado.
A proposta do governo, segundo o ministro, é que todas as forças de segurança do país se entrelacem, trabalhando em um único sentido, com a inteligência compartilhada e as operações coordenadas. O ministro defende que a aprovação da PEC da Segurança é um passo fundamental para o combate eficaz às facções criminosas que se proliferam no Brasil, tornando as operações contra o crime organizado mais efetivas.
“Se o governo de fato estivesse preocupado em avançar contra o crime organizado, já teria operado para que facções criminosas fossem enquadradas como núcleos terroristas, mas, pelo contrário, acabou descartando essa possibilidade – mesmo sob alertas dos Estados Unidos quanto ao avanço das facções brasileiras pelo planeta”, destaca Luiz Augusto Módolo.
Lula diz que megaoperação vai facilitar aprovação da PEC da Segurança
O mesmo discurso já havia sido reforçado pelo próprio presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) que chegou a dizer, categoricamente, que a megaoperação vai facilitar a aprovação da PEC da Segurança. “Essa megaoperação vai facilitar a aprovação da PEC da segurança […] Nós trabalhamos em conjunto com o Ministério Público de São Paulo nesta operação e tem que ser assim para a gente poder fazer valer a força da polícia e a força da Justiça”, disse durante entrevista à rádio Itatiaia.
Após a operação, que prendeu apenas seis dos 14 alvos, mas que revelou um esquema que chegava a 1,2 mil postos de combustíveis, o ministro da Justiça agora planeja uma nova rodada de debates com líderes políticos e governadores para retomar sua proposta da PEC da Segurança.
Para o deputado federal Mendonça Filho (União-PE), relator da PEC da Segurança na Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) na Câmara dos Deputados, o texto precisa ser aprimorado e isso deve ocorrer na Comissão Especial.
“Mas cada um faz seu papel. Os governadores seguem alertando que a proposta, da forma como está, tira espaço das forças policiais estaduais e dá mais poderes à União, inclusive para ditar diretrizes gerais à segurança e esquece que o crime organizado tem características diferentes, muda de região para região”, reforça Sérgio Gomes.
O que prevê a PEC da segurança após aprovação na CCJ
A PEC da Segurança Pública, proposta pelo Ministério da Justiça, passou por mudanças significativas na Comissão de Constituição e Justiça da Câmara, onde foi aprovada em julho, mas o texto ainda é alvo de amplas críticas e a oposição acredita que ela não deva prosperar.
O texto, que vai para a análise de uma Comissão Especial antes de ser apreciada em Plenário, perdeu parte do caráter centralizador pretendido pelo governo federal, apesar de analistas afirmarem que ele ainda mantém fortes influências sobre a segurança pública nos estados.
Entre as alterações feitas pelo relator estão:
- A retirada da competência exclusiva da União para legislar sobre normas gerais de segurança;
- O fim da exclusividade investigativa da Polícia Federal e das Polícias Civis, mantendo a divisão de responsabilidades entre União, estados e municípios;
As alterações desagradaram o Palácio do Planalto, que pretende reaver parte do texto original.
Para o criminalista Gauthama Fornaciari, a PEC deveria priorizar a gestão eficiente da legislação já existente, como o Sistema Único de Segurança Pública (Susp), em vez de promover mudanças constitucionais que pouco alteram a prática.
O senador Sergio Moro (União-PR) avaliou que a proposta “não resolve os problemas reais da segurança pública” e defendeu mais investimentos em inteligência, integração e ações concretas contra o crime organizado.
Apesar de ter passado na Comissão de Constituição e Justiça, a PEC enfrenta resistência de prefeitos, governadores e entidades municipais, que criticam a falta de previsão de recursos para bancar novas atribuições e a ausência de diferenciação entre municípios e estados em tamanhos, realidades e capacidades distintas.
“Cada estado e região têm suas peculiaridades na segurança, isso certamente não será obedecido em uma norma geral – o que não traz benefícios à população”, afirma Gomes.
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Como foi a megaoperação contra o PCC
A Polícia Federal, a Receita Federal e o Ministério Público de São Paulo deflagraram, na quinta-feira (28), três operações simultâneas — Carbono Oculto, Quasar e Tank. A megaoperação desmantelou um esquema bilionário operado pelo PCC. Segundo as investigações, a facção movimentou cerca de R$ 52 bilhões de 2020 a 2024, utilizando fintechs, fundos de investimento e empresas de fachada para lavar dinheiro proveniente do tráfico de drogas e de um esquema de adulteração e sonegação de combustíveis.
Ao todo, foram expedidos 14 mandados de prisão, apenas seis pessoas foram presas e oito seguem foragidas. Foram expedidas 350 ordens de busca e apreensão em dez estados, incluindo 42 endereços na Avenida Faria Lima, centro financeiro de São Paulo.
De acordo com a Receita Federal, o esquema envolvia a importação irregular de combustíveis e adulteração de produtos. O combustível adulterado era distribuído para uma rede de cerca de 1,2 mil postos controlados pelo PCC em dez estados, causando prejuízo estimado em R$ 7,6 bilhões aos cofres públicos. Além disso, a facção utilizava empresas de fachada para lavar dinheiro e movimentar grandes quantias em espécie, dificultando o rastreamento dos recursos.
A investigação também identificou o uso de mais de 40 fundos de investimento, com patrimônio aproximado de R$ 30 bilhões, para blindar o patrimônio do PCC. Entre os bens adquiridos com recursos ilícitos estão 1,6 mil caminhões para transporte dos combustíveis e produtos adulteradores, quatro usinas de álcool, um terminal portuário e pelo menos 100 imóveis. Segundo as autoridades, o esquema revelava uma “infiltração do crime organizado na economia real e no sistema financeiro”. As operações foram classificadas pelo governo federal e pela Receita como a maior resposta do Estado brasileiro ao crime organizado na história.
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FonteGazeta do Povo