A Comissão Parlamentar de Inquérito (CPMI) do INSS deu início aos trabalhos na manhã desta terça-feira (26) mirando a engrenagem que uniu, de um lado, sindicatos e entidades que viram na “filiação” de aposentados uma forma de recompor receitas após o fim do imposto sindical (2017) e, de outro, associações de fachada criadas para levantar dinheiro via desconto em folha de pagamentos da Previdência Social.
O terreno ficou fértil com falhas de controle no INSS, suspeitas de propina a servidores e inépcia (ou conivência) nos altos escalões, enquanto o Congresso afrouxou a regra criada no governo do ex-presidente Jair Bolsonaro (PL) – antes, havia a exigência que a revalidação das autorizações fosse anual, mas ela passou a ter que ser efeita apenas a cada três anos.
“O nosso trabalho não é simples, devemos apurar com cautela e coragem todos os responsáveis pelos desvios nas aposentadorias e pensões e apontar meios para que esse tipo de prática nunca mais ocorra”, disse o presidente da comissão Carlos Viana (Podemos-MG) na abertura dos trabalhos. “Tenho compromisso, tanto com o governo atual, quanto com a oposição, com os partidos, de nós darmos previsibilidade aos trabalhos dessa comissão”, disse.
Dados da Controladoria Geral da União (CGU) e a Polícia Federal (PF) estimam que até R$ 6,3 bilhões em descontos entre 2019 e 2024 podem ter sido afetados por irregularidades. por amostragem, uma auditoria entrevistou 1.273 beneficiários nas 27 unidades da federação e constatou que 97,6% deles disseram não ter autorizado os débitos. O levantamento também apontou indícios que apontam para problemas em 31 entidades.
Como se trata de estimativa por amostragem, não é possível saber com precisão o montante total de fraudes e o que foi contratação legítima de serviços. Provar a parcela efetivamente desviada será um dos desafios centrais da CPMI.
Os valores descontados pelos sindicatos e associações saltaram de R$ 706 milhões (2022) para R$ 1,3 bilhão (2023) e R$ 2,8 bilhões (2024), com picos equivalentes a 83 “novos filiados” por minuto, ritmo que a comissão pretende confrontar com dirigentes de entidades e gestores do INSS.
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Requerimentos do relator da CPMI do INSS visam ex-ministros e ex-presidentes do órgão
Ao iniciar formalmente os trabalhos nesta terça-feira, a CPMI do INSS deverá aprovar requerimentos apresentados pelo relator, deputado Alfredo Gaspar (União-AL), que convocam ex-ministros da Previdência e antigos presidentes do instituto a falar aos membros da CPMI do INSS.
A lista reúne nomes de peso da política e da gestão previdenciária nas últimas décadas. O relator pediu o depoimento de Eliane Viegas Mota, diretora de Auditoria de Previdência e Benefícios da CGU; o delegado da PF Bruno Oliveira Pereira Bergamaschi; a coordenadora da DPU Patrícia Bettin Chaves; o advogado Eli Cohen; os ex-ministros José Carlos Oliveira, Carlos Lupi, Marcelo Abi-Ramia Caetano e Carlos Eduardo Gabas; além de uma bateria de ex-presidentes do INSS (como Alessandro Stefanutto, Leonardo Rolim, Lindolfo Sales, Renato Vieira, Elisete Iwai, Guilherme Serrano, Glauco Wamburg, Leonardo Gadelha, Edison Britto Garcia e Francisco Paulo Soares Lopes).
Além deles, ao menos nove ex-presidentes do INSS aparecem na lista: Lindolfo Neto de Oliveira Sales, Renato Rodrigues Vieira, Leonardo José Rolim Guimarães, Alessandro Antonio Stefanutto, Elisete Berchiol da Silva Iwai, Guilherme Gastaldello Pinheiro Serrano, Glauco André Fonseca Wamburg, Leonardo de Melo Gadelha, Edison Antônio Costa Britto Garcia e Francisco Paulo Soares Lopes.
A estratégia da comissão é compreender como, ao longo de diferentes governos, se consolidou um modelo que permitiu – ou não foi capaz de impedir – descontos ilegais em aposentadorias e pensões por meio de convênios fraudulentos.
Gaspar também pediu à Procuradoria-Geral da República (PGR) informações sobre os inquéritos que investigam as entidades envolvidas. Entre elas estão:
- Confederação Nacional dos Trabalhadores na Agricultura (Contag)
- Confederação Nacional dos Agricultores Familiares e Empreendedores Familiares Rurais (Conafer)
- Associação Beneficente e Cultural Backman Nacional (Amar Brasil)
- Associação dos Aposentados Mutualistas para Benefícios Coletivos (Ambec)
- Associação de Proteção e Defesa dos Direitos dos Aposentados e Pensionistas (APDAP Prev, antiga Acolher)
- Associações Universo
- Associação Nacional de Aposentados e Pensionistas (Aapen)
- Caixa de Assistência dos Aposentados e Pensionistas do INSS (Caap)
- Master Prev Clube de Benefícios
Essas entidades estão no centro do esquema de descontos sem autorização, que atingiu milhões de beneficiários. Só a Contag, por exemplo, teria movimentado quase R$ 3 bilhões em repasses entre 2016 e 2023, de acordo com auditorias da CGU.
Gaspar afirmou que a investigação terá como foco principal rastrear recursos desviados do sistema previdenciário. “Uma das principais etapas é seguir o caminho do dinheiro. O aposentado está passando fome em casa, com sacrifício, mas tem alguém que colocou o dinheiro no bolso, morando em cobertura luxuosa, com aeronaves, barcos, propriedades no exterior. Temos que percorrer o caminho desse dinheiro”, afirmou em entrevista ao portal Metrópoles.
Já o senador Izalci Lucas (PL-DF), autor de mais da metade dos requerimentos da CPMI do INSS, disse à Gazeta do Povo que pretende investigar todos os sindicatos envolvidos nos esquemas de descontos suspeitos em contracheques de aposentados. Segundo ele, nenhuma entidade será poupada. “Todos os sindicatos que aparecem nos relatórios da Polícia Federal e da Controladoria-Geral da União serão chamados. Se não comparecerem voluntariamente, vamos convocar. Ninguém ficará de fora”, afirmou.
Além das convocações, Izalci protocolou uma série de pedidos de quebra de sigilo bancário e fiscal de dirigentes, empresas e entidades ligadas às denúncias. O senador garante que as solicitações não são genéricas, mas fundamentadas em documentos já existentes. “Não fiz nenhum pedido aleatório. Cada quebra de sigilo tem justificativa baseada em indícios concretos, relatórios oficiais e processos em andamento. É a única forma de seguir o dinheiro e mostrar de onde saiu e para onde foi”, disse.
Para o parlamentar, a transparência será o diferencial desta comissão. “Não haverá seletividade. Quem não deve, não teme. Agora, quem enriqueceu de forma suspeita ou participou de fraudes vai ter que explicar e devolver o que recebeu indevidamente”, completou.
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Frei Chico e o “Careca do INSS” serão alvos-chave da CPMI
Entre os requerimentos apresentados na CPMI do INSS, dois nomes se destacam pela repercussão política e pelo peso nas investigações: José Ferreira da Silva, o “Frei Chico”, irmão do presidente Lula e vice-presidente do Sindicato Nacional dos Aposentados, Pensionistas e Idosos (Sindnapi), e Antônio Carlos Camilo Antunes, conhecido como o “Careca do INSS”, apontado pela Polícia Federal como um dos principais intermediários das fraudes.
A convocação de “Frei Chico” é vista como inevitável pela oposição. O Sindnapi, sindicato do qual ele faz parte da direção, foi uma das entidades citadas na Operação Sem Desconto e alvo de mandados de busca e apreensão. Embora Frei Chico não figure formalmente como investigado, sua posição na cúpula sindical e o vínculo familiar com o presidente da República transformam seu depoimento em um ponto de alto desgaste político para o governo.
Parlamentares esperam que ele esclareça como a entidade chegou a triplicar seu número de filiados em poucos anos e conseguiu arrecadar cerca de R$ 90 milhões anuais com descontos em folha de beneficiários.
O sindicalista José Ferreira da Silva, conhecido como “Frei Chico”, disse que esperava a investigação de “toda a sacanagem” do INSS por parte da PF. “Eu espero que a Polícia Federal investigue de fato toda a sacanagem que tem. Agora, o nosso sindicato, eu tenho que certeza que nós não temos nada, não devemos m**** nenhuma. Eu espero que ela investigue de fato porque tem muitas entidades por aí picaretas. Nosso sindicato já foi investigado, já foi feita auditoria e essas coisas. Estamos tranquilos”, disse “Frei Chico” ao jornal O Estado de S. Paulo em abril.
Já o “Careca do INSS” é descrito pelos investigadores como um operador do esquema, atuando nos bastidores para aproximar entidades suspeitas de dirigentes do instituto e facilitar a celebração de convênios. Sem ocupar cargo formal na autarquia, ele teria funcionado como lobista e elo entre associações e servidores, garantindo a manutenção dos repasses indevidos. Sua presença é considerada estratégica para revelar como funcionava a engrenagem que permitiu os descontos sem autorização.
Em nota enviada ao jornal O Globo, a defesa de Antunes afirmou que “confia plenamente na apuração dos elementos constantes nos autos e na atuação das instituições do Estado Democrático de Direito. Ao longo do processo, a inocência de Antonio [Antunes] será devidamente comprovada”.
Relembre o escândalo do INSS
As denúncias de descontos ilegais em aposentadorias e pensões ganharam repercussão nacional em abril de 2025, com a deflagração da Operação Sem Desconto, conduzida pela Polícia Federal (PF) em parceria com a Controladoria-Geral da União (CGU).
As investigações tiveram início após reclamações recorrentes de beneficiários que relatavam reduções indevidas em seus pagamentos mensais — prática que se arrastava há anos e se intensificou entre 2019 e 2024.
De acordo com a CGU, o esquema consistia em convênios firmados entre entidades, associações e sindicatos com o INSS, que permitiam descontos automáticos diretamente na folha de pagamento. Na prática, porém, a maior parte dessas cobranças ocorria sem autorização dos segurados: em 97% dos casos analisados, os aposentados nunca haviam dado consentimento. O prejuízo estimado chega a R$ 6,3 bilhões no período.
O golpe utilizava assinaturas falsificadas para cadastrar falsos associados e justificar os descontos. Normalmente, os valores giravam em torno de R$ 70 por mês, mas em alguns casos eram ainda maiores. O dinheiro era transferido a entidades que alegavam oferecer assistência jurídica, financeira ou de saúde — serviços que, segundo os beneficiários, jamais foram contratados.
Muitos aposentados só descobriram a fraude ao perceber que seus benefícios vinham reduzidos. Ao consultar os extratos, encontraram descontos em favor de associações desconhecidas. A Polícia Federal apurou que o volume mais expressivo de recursos desviados ocorreu durante o governo Lula (PT), período que concentrou cerca de 60% do total movimentado.
Fraudes em empréstimos consignados expõem rombo de R$ 90 bilhões no INSS
Além dos descontos irregulares nos benefícios do INSS, outro “braço” da investigação diz respeito às irregularidades envolvendo empréstimos consignados. Em 2023, foram liberados cerca de R$ 90 bilhões em crédito consignado para aposentados e pensionistas, mas parte significativa deles sem qualquer comprovação de autorização. Auditorias do Tribunal de Contas da União (TCU) apontaram que milhares desses contratos não tinham documentação válida. A suspeita é de haja envolvimento de bancos, correspondentes bancários e também das associações na concessão irregular desses empréstimos consignados.
A Polícia Federal identificou que as fraudes iam além das mensalidades associativas. Muitos beneficiários tiveram empréstimos contratados em seus nomes sem consentimento, descobrindo os débitos apenas ao consultar o extrato do INSS.
O problema era agravado por práticas como refinanciamentos automáticos, que prolongavam dívidas indefinidamente, e abordagens enganosas de correspondentes bancários. Em alguns casos, idosos acumulavam dezenas de contratos simultâneos, que corroíam quase a totalidade do benefício.
Somente em 2023, aproximadamente 35 mil reclamações foram formalmente registradas sobre consignados não autorizados. O impacto foi devastador: aposentados e pensionistas, em sua maioria de baixa renda, ficaram presos a dívidas que não contraíram, sofrendo prejuízos financeiros e emocionais profundos.
A gravidade levou o governo a suspender temporariamente a concessão de novos empréstimos consignados e descontos em folha – medida que atingiu bancos e entidades investigadas. O INSS, por sua vez, foi obrigado a aprimorar seus mecanismos de segurança, adotando exigências como biometria ou assinatura eletrônica para validar contratos.
FonteGazeta do Povo