Oleksandra Matviichuk, fundadora do Centro pelas Liberdades Civis, organização laureada com o Prêmio Nobel da Paz em 2022, pediu aos brasileiros que ajudem a manter a invasão à Ucrânia na agenda política do país, como parte de um esforço internacional para que atrocidades de guerra cometidas pela Rússia não continuem acontecendo. De passagem pelo Brasil, ela contou como o movimento popular que levou à deposição de um governo autoritário pró-Moscou na Ucrânia em 2014 começou com a formação de redes de apoio jurídico a manifestantes presos arbitrariamente por defender liberdades civis.
O Centro pelas Liberdades Civis ganhou o Nobel da Paz por seu trabalho de promover o direito de criticar o poder e defender direitos fundamentais dos cidadãos na Ucrânia a partir de 2007. Desde a invasão russa à Crimeia e ao Donbas em 2014, a organização documentou 89 mil crimes de guerra, casos de tortura, assassinatos, sequestros e deportação forçada de civis e os reportou a organismos como o Tribunal Penal Internacional, a Comissão Internacional de Inquérito da ONU e o Mecanismo de Moscou da Organização para a Segurança e Cooperação na Europa (tratado que permite a atuação de peritos internacionais em investigações imparciais de crimes contra os direitos humanos).
Formada em Direito, o trabalho de Oleksandra na prática é entrevistar ucranianos que vivem em territórios temporariamente ocupados pela Rússia na Ucrânia, reunir provas e denunciar casos de tortura, estupro, rapto e assassinato cometidos pelas forças de ocupação russas contra a população civil.
Oleksandra passou pelo Brasil no fim de agosto em uma viagem destinada a promover debates sobre proteção de liberdades civis e denúnciar crimes de guerra. Em Brasília, ela deu uma palestra organizada pela Casa Dom Luciano, da Igreja Católica, e pela Embaixada da Ucrânia.
A ucraniana relatou como o estupro é usado como arma de guerra para controle da população em territórios ocupados e como 19 mil crianças ucranianas foram levadas para campos de “russificação” e posteriormente para adoção por famílias russas. A Gazeta do Povo optou por direcionar os questionamentos a ela para questões políticas e não para os crimes de guerra em si.
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Leia abaixo os principais trechos das respostas de Oleksandra Matviichuk à Gazeta do Povo e a outros membros da audiência durante a palestra:
Donald Trump é a pessoa certa capaz de fazer Vladimir Putin assinar um tratado de paz com a Ucrânia?
Oleksandra Matviichuk: O presidente Donald Trump disse que pararia esta guerra em 24 horas. Ainda penso que estas são as 24 horas mais longas da história humana. Os Estados Unidos têm poder para parar Putin, mas não sei se usarão esse poder. Mas eu sei o que quero do Brasil, dos Estados Unidos, da África do Sul, da Índia e de outros países do mundo. Ajudem-nos nesta fase a resolver problemas humanitários urgentes. Sabemos que o Brasil tem boa comunicação com a Rússia. Vocês podem usá-la para levantar a questão das crianças ilegalmente deportadas, para pressionar Putin a devolvê-las para suas casas. Seria uma enorme ajuda e assistência.
Como os países podem agir de forma mais proativa em relação à invasão da Rússia?
Oleksandra Matviichuk: Comecei a minha manhã aqui no Brasil verificando as notícias. Ainda tenho uma casa para onde voltar? Minha família e os meus colegas ainda estão vivos? Esse é um ritual que milhões de ucranianos fazem todos os dias, estando no estrangeiro ou na Ucrânia. Porque se a sua cidade natal não foi atingida esta noite por drones ou mísseis, isso não significa que a cidade vizinha não tenha sido atingida. E a Rússia pode produzir drones e foguetes porque ainda tem dinheiro. E muitos países no mundo não aderem às sanções. Eles ainda comercializam com a Rússia. E estes países têm de estar cientes de que não é apenas comércio. Eles estão financiando esta guerra, porque oficialmente 40% do orçamento russo vai para despesas militares. Vai para esses drones e foguetes que a Rússia usa contra civis ucranianos para atingir hospitais, edifícios residenciais, escolas, igrejas e crianças. Então, este é apenas um exemplo.
Gazeta do Povo – O Brasil é um grande importador de diesel da Rússia. Importamos mais de R$ 38 bilhões em 2024 e continuamos a fazer isso. O que a senhora diria às pessoas que estão neste país, sabendo que o nosso presidente não se importa?
Oleksandra Matviichuk: Em primeiro lugar, gostaria de partilhar convosco as minhas impressões. Estive no Brasil por dois dias e tive várias reuniões e vários eventos públicos. E falei com o público jurídico, falei com estudantes e sempre senti um acolhimento caloroso. Então vejo que as pessoas no Brasil entendem pelo que estamos lutando e partilham a nossa vontade e dedicação à liberdade e à dignidade humana. Então não há obstáculos entre nós. Brasil e Ucrânia estão distantes um do outro do ponto de vista geográfico, mas estamos muito próximos do ponto de vista dos valores. É por isso que provavelmente terei duas mensagens para as pessoas no Brasil.
Primeiro, gostaria de expressar a minha sincera gratidão às pessoas no Brasil que nos apoiam neste momento dramático da nossa história. Estamos habituados a pensar nas categorias de Estados, líderes, líderes políticos, organizações internacionais, mas as pessoas comuns importam e não subestimamos a importância de simples gestos humanos. Então, quando uma senhora idosa brasileira me abraçou e me disse: “Vou rezar por ti e vou rezar pelo teu povo”, isso significa muito, porque somos humanos e para mim, estar aqui e saber que não estamos sozinhos a lutar contra um poder tão enorme é muito importante. Então, a minha primeira mensagem é a mensagem de gratidão.
A segunda mensagem é que precisamos da sua ajuda. Não estou em posição de dizer às pessoas o que elas devem fazer, porque elas sabem melhor o que podem fazer, pessoas diferentes podem fazer coisas diferentes. Mas por favor ajudem-nos a manter a Ucrânia na agenda da política brasileira. É muito importante. Lembro-me sempre quando enviámos grupos [de investigadores] para Bucha, para Irpin [cidades que foram palco dos maiores massacres conhecidos da Rússia], para a região de Kyiv após os primeiros meses da invasão em grande escala. Encontramos corpos de pessoas espalhados pelas ruas, nos jardins das suas próprias casas. Encontrámos valas comuns. Encontramos corpos de pessoas, de famílias inteiras com crianças em carros civis que foram bombardeados ou fuzilados deliberadamente enquanto tentavam escapar da zona de perigo. E lembro que pensei comigo mesma: “Meu Deus, se os russos fizeram essa coisa horrível quando o mundo inteiro observando, o que vai acontecer quando o mundo perder o interesse sobre a guerra”? Então, por favor, ajudem-nos a manter a Ucrânia na agenda política do Brasil.
Gazeta do Povo – Como a sua organização e outras conseguiram reunir a sociedade civil para lutar pela liberdade antes de 2014? No Brasil, estamos enfrentando uma falta de liberdade agora por causa de ações do Supremo Tribunal Federal. Como vocês ucranianos conseguiram reunir as pessoas, a sociedade civil, as entidades no processo que levou à Revolução de Maidan [insurreição popular que derrubou o governo pró-Russia da Ucrânia e convocou eleições gerais em 2014]?
Oleksandra Matviichuk: Começarei olhando para o futuro com otimismo. Quando abrimos qualquer pesquisa de opinião na Ucrânia, vemos que os ucranianos colocam a liberdade em primeiro lugar na hierarquia de valores. Isto é algo no nosso DNA. Quando refleti sobre isso, percebi que para as pessoas na Ucrânia a liberdade não é um valor de autodeterminação. A liberdade para as pessoas na Ucrânia é um valor de sobrevivência, porque estivemos sob domínio russo, fazendo parte do Império Russo durante três séculos. Esta guerra não dura 12 anos. Porque a primeira vez que os russos proibiram a língua ucraniana foi no tempo do czar russo. Por isso, se os ucranianos não fossem tão teimosos na nossa luta pela liberdade, deixaríamos de existir. Teríamos desaparecido durante esses séculos. É por isso que olho para o futuro com otimismo. Mas não vejo que o futuro será fácil.
Além disso, os ucranianos nunca tiveram o luxo de ter o seu próprio Estado por um longo período. Tivemos um período muito curto em que restauramos a nossa independência no século 19, no século 17 e anteriormente. Mas todas estas tentativas colapsaram. É por isso que os ucranianos não têm o hábito de confiar nas instituições estatais, porque durante séculos não foram as nossas instituições estatais. Foram instituições estatais nomeadas e trabalhadas por Moscou. É por isso que temos o hábito, quando algo existencial acontece, de não esperar que o Estado venha e nos salve. Nós nos organizaremos e faremos o nosso trabalho. Essa é uma grande diferença entre outras nações que têm este luxo de depender de instituições estatais sustentáveis e bem desenvolvidas.
Deixe-me contar uma história: a liberdade não foi concedida aos ucranianos. Há apenas 12 anos estávamos sob um regime autoritário e corrupto pró-russo. E foi aí que começou a Revolução da Dignidade. A Rússia tentou retratar essa revolução da dignidade como um “golpe nazi” ou algo parecido. Mas, na realidade, foi uma situação em que milhões de pessoas levantaram a voz contra um governo corrupto e autoritário e saíram às ruas e manifestaram-se pacificamente, apenas por uma oportunidade de construir um país onde os direitos de todos são protegidos, o governo é responsável, o poder Judiciário é independente e a polícia não espanca estudantes que se manifestam pacificamente.
Foram pedidos muito simples das pessoas ao governo, e o governo respondeu com uma perseguição em grande escala e sistemática. Eu criei uma iniciativa civil na época e unimos milhares de pessoas para fornecer assistência jurídica a manifestantes perseguidos em todo o país. Todos os dias, centenas e centenas de pessoas que foram presas, espancadas, torturadas, acusadas e com casos criminais fabricados passavam por aqui. Foi uma situação em que enfrentamos toda a máquina do Estado autoritário. Eles queriam liquidar o protesto pacífico, até fisicamente. Então, foi uma situação muito difícil porque nos encontrámos numa situação em que a lei não funciona e as pessoas começaram a sentir esse desamparo.
Lembro-me que um artista ucraniano fez uma bela série de cartazes e um dos cartazes tinha a imagem de uma gota com o título: “somos uma gota no oceano”. Isso significa que não somos Deus, somos seres humanos. Os nossos esforços são modestos, mas temos de saber que, mesmo que não possamos mudar algo com os nossos esforços individuais, sem os nossos esforços individuais nada será mudado. Mais ainda: juntos somos um oceano, juntos nós podemos.
FonteGazeta do Povo